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São Sebastião recebeu ao menos 4 alertas sobre risco no Sahy em 10 anos

 

Foto: Fernando MARRON / AFP

Naief Haddad

Nos últimos dez anos, a prefeitura de São Sebastião (SP) recebeu pelo menos quatro alertas de diferentes instituições sobre o risco iminente de deslizamentos.

Estudos detalhados da Unicamp e do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), além de propostas do Mackenzie e da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), chamaram a atenção para a gravidade da situação nas encostas do litoral norte paulista.

Não bastassem esses avisos, que explicitavam situações de perigo, o Ministério Público de São Paulo enviou à administração da cidade um parecer técnico sobre a vulnerabilidade da Vila Sahy, porção pobre da Barra do Sahy, localizada entre a rodovia e a Serra do Mar.

Até a tarde de sábado (24), era 57 o número de mortos na tragédia causada pelas chuvas históricas no último final de semana na região.

O primeiro capítulo dessa sucessão de alertas em uma década aconteceu em 2013, quando pesquisadores da Unicamp publicaram um estudo sobre a expansão das áreas de risco da região depois de quatro anos de trabalho.

Àquela altura, esses especialistas detalharam os “perigos que se expressam pela falta de ajuste e aderência da produção do espaço urbano aos sistemas naturais. Esta situação se agrava quando o próprio sítio é naturalmente frágil, como é o caso das áreas costeiras do litoral norte de São Paulo”.

Segundo o estudo, “a tendência deste novo período [a partir dos anos 2000], que aponta para a metropolização da região, traz novas questões, novas demandas e novas características do processo de urbanização que ainda não foram pensadas ou previstas.”

Para Eduardo Marandola Júnior, geógrafo e professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, “chuvas de 600 mm são raríssimas, mas não podemos culpar a natureza pelas mortes. O problema é o modelo de urbanização, que não considera as variáveis ambientais e sociais, e vai criando áreas de risco”.

Além de Marandola Júnior, assinaram o estudo Letícia Braga Cassaneli, Cesar Marques e Luiz Tiago de Paula.

Ainda de acordo com ele, grandes obras na região, impulsionadas sobretudo pela descoberta do pré-sal em meados dos anos 2000, levaram a um crescimento populacional para o qual as cidades não estavam preparadas.

No entanto, segundo o geógrafo, não se pode associar diretamente o aumento da população com a ocupação das áreas de risco. “Essas cidades têm domicílios vazios e áreas ociosas, mas esses espaços não estão ao alcance dos mais pobres, que acabam vivendo em áreas de risco, onde não existe interesse do mercado imobiliário.”

Após ser concluído, o estudo foi enviado para a prefeitura de São Sebastião, que não respondeu à reportagem se alguma medida foi tomada.

Dois anos depois, veio à tona outra iniciativa do meio acadêmico. A pedido da CDHU, que pertence ao governo estadual, o Laboratório de Projetos e Políticas Públicas da universidade Mackenzie preparou um estudo para a Vila Sahy.

Conduzido pelo professor Valter Caldana, o projeto sugeria a transferência de 180 famílias daquela área para terrenos nas proximidades em um pacote que incluía ainda regularização fundiária, saneamento básico e oferta de empregos.

A área onde hoje está a Vila Sahy daria lugar a um pequeno parque, com obras de contenção para evitar deslizamentos, lembra Caldana.

A proposta não foi adiante. De acordo com o governo estadual, tratava-se apenas de um estudo acadêmico, e não de um projeto propriamente.

Nos anos seguintes, as ideias de Caldana e sua equipe foram tomadas como base para propostas de mudanças na Vila Sahy. Ao longo do primeiro semestre de 2022, reuniões para discutir aquela área tiveram a participação de integrantes da Secretaria Estadual de Habitação, da CDHU e da prefeitura.

Fernando Marangoni (União Brasil), atualmente deputado federal, era assessor da presidência da CDHU naquele período e esteve em algumas dessas reuniões. Segundo ele, o governo estadual se encarregaria da desapropriação de um terreno ao lado da Vila Sahy para a transferência dos moradores e da construção das casas. Ao município, caberia evitar ocupações irregulares, entre outras ações.

Em agosto, os dois lados pareciam próximos de um consenso, mas a prefeitura não assinou o convênio. “Não dá pra dizer que o acordo teria evitado algum óbito porque o início das construções levaria algum tempo. Mas seria, ao menos, o começo de uma intervenção necessária”, diz Marangoni.

Dois meses depois, questionado por um requerimento da Câmara o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), disse que não havia previsão da data da assinatura em razão da transição de governo estadual.

Outros atores lançaram seus alertas ao longo dessa novela de final catastrófico. No segundo semestre de 2018, o IPT preparou um Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) para São Sebastião.

Depois de analisar mais de 4.000 moradias, uma equipe de três geólogos e três engenheiros indicou 52 setores sujeitos a deslizamentos de terra. Deles, 16 foram classificados como sendo de risco alto, e 36, como risco médio -onde estava a Vila Sahy.

Como a área que acumula dezenas de mortes pode ter sido considerada de risco médio? “A metodologia do IPT é pensada para chuvas dentro da normalidade, e não para eventos extremos, como esse que vimos”, afirma o geólogo do IPT Eduardo Soares de Macedo, que trabalha há mais de 30 anos em avaliações como essa.

Choveu 627 mm em 24 horas em São Sebastião, índice pluviométrico que representa uma marca histórica.

De qualquer forma, pondera Macedo, a classificação de risco de uma área pode sofrer alteração passados quatro anos. “Houve mudanças naquele terreno”, diz o geólogo.

O plano do IPT foi entregue à prefeitura -e não poderia ser diferente já que ela foi a responsável pela contratação do instituto. Até a conclusão deste texto, a administração municipal não havia respondido se tinha tomado alguma iniciativas.

Em novembro de 2020, ou seja, dois anos depois do levantamento do IPT, um grupo formado por um geólogo, um biólogo e um urbanista realizou nova inspeção na Vila Sahy. Estavam a serviço do Ministério Público de São Paulo.

As conclusões do parecer técnico, finalizado em fevereiro de 2021, são assustadoras e, como se sabe hoje, realistas. “A manutenção do Núcleo Congelado [como o documento se refere à Vila Sahy] na área e nos moldes em que se encontra é uma verdadeira tragédia anunciada”, registra.

Além dos riscos de deslizamento, o relatório enumera dezenas de outros problemas, como a inexistência de um sistema de abastecimento de água potável e a precariedade da iluminação pública.

Outro trecho do parecer ressalta que “a ausência de ação fiscalizatória do poder público municipal e a total ineficiência das medidas adotadas dentro de seu poder de polícia permitiram a ocupação e a expansão desenfreada […] da Vila Sahy, situação ainda verificada na área da ocupação desordenada do solo urbano”.

“Uma tempestade como essa é algo fora do contexto, mas os danos poderiam ter sido muito menores se existisse uma situação razoável de moradia”, diz Mário Sarrubo, procurador-geral de Justiça de São Paulo, à Folha.

Entre as dezenas de fotos da Vila Sahy que compõem o documento, há imagens de pisos residenciais com longas rachaduras e casas muito próximas à encosta dominada pela Mata Atlântica.

De acordo com Sarrubo, o relatório é relevante por identificar com clareza as áreas de risco, o que “pode gerar eventualmente uma responsabilidade, até mesmo no campo penal, das autoridades que se omitiram”.

A prefeitura de São Sebastião recebeu as informações detalhadas da Promotoria há dois anos. A reportagem procurou o município para saber que medidas tomou, mas não obteve resposta até a conclusão deste texto.

Os alertas ficaram no passado. No presente, a Vila Sahy conta seus mortos.

Por FolhaPress

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