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Baiano vítima do tráfico de crianças procura família 30 anos depois de ser adotado por americanos


 Entre janeiro de 1984 a abril de 1986, estima-se que pelo menos 460 bebês e crianças baianas foram enviadas para fora do Brasil em processos ilegais de adoção, como calculou a Polícia Federal quando os casos passaram a ser revelados pela imprensa nacional e internacional naquela década.

Um esquema nutrido por padres, juízes e assistentes sociais, que ficavam responsáveis por forjar documentos e convencer mães em vulnerabilidade social a entregar seus filhos com a promessa de uma vida próspera além do trópico.

Longe das referências de suas famílias brasileiras, agora, as vítimas do tráfico de crianças tentam se reconectar com o país de origem em busca de uma única resposta: a identidade de seus pais biológicos.

Adoção

Ned Bennington chegou aos Estados Unidos entre seis e oito meses de idade depois que seus pais adotivos, que não podiam ter filhos, contactaram uma associação estadunidense, hoje extinta, que intermediava processos de adoção na América Latina.

Em solo brasileiro, uma assistente social era a responsável por encontrar o filho perfeito para os casais americanos estéreis. Ned foi um dos escolhidos.

Desde pequeno, o baiano sabia que era fruto de uma adoção e, à medida que crescia, aumentava também a vontade de obter mais detalhes da sua mãe biológica.

Ned teve uma infância feliz ao lado da sua família americana (Foto: arcervo pessoal)

As únicas pistas disponíveis estavam em documentos do “processo legal” de adoção: o nome Teresinha, apontada como suposta genitora, e o endereço do fórum onde ele foi registrado, em uma pequena vila chamada Belém, pertencente à cidade de Cachoeira, na região do Recôncavo baiano.

Busca

Ned só se sentiu pronto para ir em busca de suas raízes após a morte do seu pai adotivo, em 2016. Com as únicas duas pistas, o brasileiro utilizou a internet para tentar localizar a suposta mãe. Ele calcula que mandou entre 1 mil a 1,5 mil mensagens no Facebook para pessoas aleatórias de Belém e Cachoeira.  

“Ninguém conhecia a minha suposta mãe biológica, então eu falei com minha mãe adotiva para tentar entrar em contato com a assistente social que intermediou o processo de adoção e, de alguma forma, ela conseguiu o telefone”

A assistente social afirmou que não se lembrava da verdadeira família de Ned, já que havia sido responsável por centenas de adoções, mas prometeu tentar solucionar o caso.

“Depois de meses de desculpas, a assistente social comunicou que não podia me ajudar. Eu achei a justificativa razoável já que ela esteve à frente de tantas outras adoções, talvez não se lembrasse mesmo da minha família”

Primeira pista

A busca de Ned começa a tomar um rumo diferente quando os verdadeiros filhos de Teresinha tiveram acesso a sua história, que passou a ser compartilhada na internet por uma corrente de pessoas que se sensibilizaram com o caso.

“Em 2017, os filhos biológicos de Teresinha leram a minha história e me enviaram uma mensagem dizendo que eu talvez estivesse buscando pela mãe deles. Pensei: ‘são os meus irmãos’. Mas eles tinham traços muito diferentes dos meus. Os dois, que são mais velhos, sequer lembravam de uma terceira criança na família”

As peças do quebra-cabeça não se encaixaram e Ned começou a desconfiar de que a adoção estava longe de cumprir com os critérios legais. A resposta viria durante uma visita a Salvador no final de julho de 2018.

“Fui a Salvador e tive um encontro com a assistente social, que foi muito educada comigo e até me cedeu a sua casa para que eu pudesse ficar. Depois de um tempo, ela confessou que havia mentido e me pediu desculpas. Foi uma carga emocional muito grande saber que a mulher que eu idolatrava por toda a minha vida não era a minha mãe biológica, mas uma pessoa que se passou por ela para autorizar a adoção”

Ned durante visita a Salvador, no final de julho de 2018 (Foto: acervo pessoal)

Ned estava frente a frente com uma suspeita de intermediar o tráfico de bebês para fim de adoção ilegal, não mais conhecida do que Arlete Hilu, uma advogada do Paraná que atuava em um quadrilha de tráfico de crianças, e que foi  condenada em 1988 por formação de quadrilha, falsidade ideológica e adoção ilegal, depois de mandar cerca de 3 mil crianças para fora do país, sobretudo para Israel.

“A assistente social confessou que já foi acusada de tráfico, mas que, na verdade, estava apenas fazendo uma boa ação de mandar bebês para exterior para que eles tivessem uma vida melhor longe da pobreza”

Investigação

A Polícia Federal na Bahia iniciou em abril de 1986 uma investigação para apurar a denúncia de tráfico de bebês de um a três meses de idade para o exterior. A suspeita era de que a rede criminosa atuava desde janeiro de 84. A principal suspeita era a assistente social, acusada de ser intermediária na adoção de crianças por casais estrangeiros em troca de pagamentos de até U$10 mil.

“Esse processo foi descoberto somente no dia 6 [ de abril de 1986], após denúncias de um comissário de um Juizado de Salvador. O processo de adoção de crianças baianas começou na cidade de Atlanta, estado da Geórgia, nos Estados Unidos, através de uma organização denominada LAPA”, diz trecho de uma matéria publicada pelo jornal Tribuna da Bahia.

Agentes da Polícia Federal encontraram naquele ano, em um apartamento de um conjunto habitacional no bairro de Pituaçu, em Salvador, quatro bebês, todos prestes a serem enviados para novas famílias no exterior.

Matéria sobre o tráfico de bebês baianos do jornal Tribuna da Bahia (Foto: reprodução/Tribuna da Bahia)

Na residência, a suspeita, de acordo com a denúncia, matinha crianças entre 3 a 4 meses sob a responsabilidade de uma babá, até forjar documentos com ajuda de funcionários de um Juizado de Menores em Feira de Santana, centro-norte baiano, mesma cidade onde as mães biológicas, geralmente solteiras e pobres, eram aliciadas e convencidas a doar seus filhos por quantias irrisórias com a condição de nunca mais procurá-los.

Nesse processo, uma segunda pessoa era contratada para fazer o papel de mãe biológica e assinar documentos que autorizavam a adoção, servindo como uma espécie de “laranja” para o esquema criminoso, como revelaram os jornais da época. Esse foi o papel que Teresinha assumiu para autorizar a adoção de Ned.

A assistente social confirmou ao Bnews que foi investigada, mas que, por falta de provas, não foi condenada por nenhum crime. Ela negou qualquer envolvimento nos processos ilegais de adoção e afirmou que apenas atuava como tradutora das famílias extrangeiras.

A reportagem também procurou o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). Por meio de nota, a assessoria de comunicação informou que "em atendimento ao quanto disposto na Res. 121 do CNJ,  processos com o tipo especificado, tramitam em segredo de justiça, por envolver menores". A Polícia Federal disse que no banco de dados do órgão nada consta contra a suspeita naquela década.

Decepção

O brasileiro teve uma experiência frustrante e voltou para os Estados Unidos sem um novo sobrenome e com mais questionamentos que respostas. Já em casa, ao lado da mulher e dos três filhos, uma nova mensagem no Facebook o faria criar mais um fio de esperança.

Uma família brasileira que havia doado duas crianças para a assistente social, em Cachoeira, acreditava que Ned era uma delas. Eles mantiveram contato, criaram laços e, por um tempo, acreditaram ter relação consanguínea.

Ned em frente ao fórum onde foi registrado ilegalmente, no distrito de Belém, Cachoeira (Foto: acervo pessoal)

Mais um teste de DNA realizado tempos depois atestou o pior: não havia nenhuma compatibilidade genética entre eles. Psicologicamente abalado, Ned precisou de terapia para enfrentar o trauma.

O resultado do seu genoma analisado durante o teste de DNA foi compartilhado em plataformas mundiais de ancestralidade que conectam pessoas com características genéticas semelhantes.

Há 15 semanas, em um grupo do Facebook destinado a usuários que procuram por pessoas desaparecidas, um homem comentou em um post sobre a história de Ned: “Vc é tem relação com a minha avó paterna. A mãe dela é de Feira de Santana”. A esperança durou pouco. As relações de parentesco entre os dois são distantes, sendo impossível conseguir qualquer pista sobre a mãe do baiano. 

Ned costuma utilizar uma frase do escritor estadunidense Alexander Murray Palmer Haley para resumir o que sente por não saber a história da sua família biológica.

"Em todos nós existe uma fome profunda de conhecer nossa herança - de saber quem somos e de onde viemos. Sem esse conhecimento enriquecedor, há um anseio vazio. Não importa quais sejam nossas realizações na vida, ainda existe um vácuo, um vazio e a mais inquietante solidão", citou.

Nilson Marinho

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